SINCRETISMO, SABEDORIA ANCESTRAL E RELEVÂNCIA ESPIRITUAL CONTEMPORÂNEA
Introdução
Entre os inúmeros fenómenos religiosos que floresceram na Antiguidade, poucos se revelam tão apelativos para a reflexão sobre a espiritualidade da humanidade como o movimento dos hipsistarianos.
Situados no ponto de confluência entre o paganismo, o judaísmo e o cristianismo primitivo, os devotos do Theos Hypsistos – o Deus Altíssimo – criaram um espaço religioso singular, que escapava ao rígido exclusivismo das ortodoxias e, simultaneamente, antecipava tendências espiritualmente universalistas que só muito mais tarde se manifestariam plenamente.
Johann Wolfrand von Goethe, considerado o principal escritor de língua alemã, no entardecer da sua vida, confessou reconhecer-se nessa espiritualidade ao escrever:
“Não encontrei nenhuma confissão de fé à qual me pudesse aliar sem reservas. Agora, na minha velhice, porém, tomei conhecimento de uma seita, os hipsistarianos, que, encurralados entre pagãos, judeus e cristãos, declaravam que valorizariam, admirariam e honrariam o melhor, o mais perfeito que chegasse ao seu conhecimento e, na medida em que devesse ter uma ligação estreita com a Divindade, prestar-lhe-iam reverência. Uma luz alegre irradiou-me subitamente de uma era sombria, pois tive a sensação de que durante toda a minha vida ambicionei qualificar-me como hipsistariano. Esta, porém, não é uma tarefa fácil, pois como é que alguém, nas limitações da sua própria individualidade, chega a conhecer o que é mais excelente?”
Essa intuição profunda exprime a essência de uma espiritualidade que, mais do que fixar dogmas, se guiava pelo impulso interior de venerar a Divindade Absoluta na multiplicidade das suas manifestações.
Com efeito, a espiritualidade hipsistiariana representa uma das expressões mais notáveis de sincretismo religioso da Antiguidade, constituindo um fenómeno que transcende as categorias convencionais da história das religiões.
Entre os séculos III a.C. e IV d.C., o culto ao Theos Hypsistos desenvolveu uma síntese espiritual singular, harmonizando elementos do judaísmo, do paganismo greco-romano e das tradições místicas orientais, antecipando questões centrais da espiritualidade contemporânea.
A relevância histórica dos hipsistarianos reside não apenas na sua capacidade de transcender fronteiras étnicas e culturais, mas também na forma como articularam uma visão espiritual que reconhecia a legitimidade de múltiplas vias religiosas, sem abdicar do compromisso fundamental com a conexão do ser humano à Divindade.
Esta perspetiva, simultaneamente universalista e monoteísta, oferece à humanidade contemporânea um precedente histórico valioso para a compreensão da relação entre tradições espirituais aparentemente divergentes.
Fundamentos Históricos e Teológicos da Espiritualidade Hipsistiariana
Contexto histórico
A emergência da espiritualidade hipsistiariana situa-se no contexto da efervescência cultural que caracterizou o período greco-romano, particularmente após as conquistas de Alexandre Magno e a afirmação paulatina de Roma, que transformaram profundamente o mundo mediterrânico e o Médio Oriente.
As comunidades judaicas da diáspora, estabelecidas na Ásia Menor, Síria e Egipto, confrontaram-se com a necessidade de articular a sua fé monoteísta num ambiente multirreligioso.
A expressão "Theos Hypsistos" surge na Septuaginta, a tradução das Escrituras hebraicas (Antigo Testamento da Bíblia cristã) para a língua grega, como tradução do termo hebraico "El Elyon", estabelecendo uma ponte linguística que permitia comunicar a transcendência do Deus de Israel em termos compreensíveis para a cultura greco-romana.
Nas últimas décadas, foram feitas descobertas da maior relevância sobre o lugar do monoteísmo na Antiguidade Tardia.
Um passo decisivo foi a obra Pagan Monotheism in Late Antiquity (1999), de Polymnia Athanassiadi e Michael Frede, e intensificou-se com a obra subsequente de Michael Frede, One God (2010). A questão central reside em saber se o cristianismo introduziu, de facto, algo radicalmente novo na conceção da Divindade ou se já existiam formas de monoteísmo enraizadas na filosofia e na prática religiosa pagã.
Existem evidências fortes e crescentes de que o judaísmo e o cristianismo não eram as únicas religiões monoteístas da Antiguidade.
Havia outro ramo de índole monoteísta na árvore espiritual da Antiguidade, um ramo que cresceu do solo fértil da filosofia e da mitologia greco-romanas.
Com efeito, pode falar-se em monoteísmo pagão como categoria espiritual legítima.
Na perspetiva do monoteísmo pagão da Antiguidade, o conceito de monoteísmo, não implica a negação absoluta de todos os deuses, mas antes a distinção entre a Divindade suprema e as divindades menores. Este Deus transcendente é reconhecido como absoluto e soberano, enquanto os demais deuses podem ser concebidos como mensageiros, emanações ou auxiliares do Divino. Para sublinhar esta diferença, tornou-se frequente designar o Deus supremo como Theos Hypsistos — o Deus Altíssimo — em contraste com os deuses de menor estatuto.
Esta perspetiva estava longe de ser marginal entre os pensadores antigos. Diversos filósofos pagãos da Antiguidade — sejam eles platónicos, peripatéticos ou estóicos — partilhavam a crença na existência de um Deus Altíssimo. Mesmo aqueles que acumulavam funções sacerdotais nos cultos tradicionais, como Plutarco em Delfos, interpretavam as divindades do panteão não como rivais, mas como realidades subordinadas, situadas sob a autoridade do Deus único e supremo. Assim, a distinção entre Theos e theos constituía, na sua ótica, a formulação mais correta da crença religiosa pagã.
A adesão a esta forma de monoteísmo não se restringiu ao círculo filosófico. A prática de venerar um Deus supremo conheceu larga difusão entre as populações da Antiguidade Tardia. O culto ao Theos Hypsistos assumiu particular popularidade no Império Romano, com testemunhos abundantes desde a Grécia e a Macedónia até à Anatólia.
A própria distribuição geográfica e cronológica dessas evidências arqueológicas dificulta a interpretação de que tal culto derive primordialmente da tradição judaica. Tudo indica que a veneração ao Deus Altíssimo teve origem nos territórios helénicos e anatólios, eventualmente com afinidades com conceções iranianas, mais do que com o monoteísmo abraâmico. Importa ainda notar que alguns autores da Antiguidade consideravam que a religião romana primitiva, na sua matriz, era já de natureza monoteísta.
O movimento hipsistariano, constituído pelos devotos do Theos Hypsistos (o “Deus Altíssimo”), parece ter emergido precisamente no cruzamento de duas tradições.
Do lado pagão, conforme foi mencionado, filósofos platónicos, estóicos e peripatéticos haviam já elaborado uma distinção entre o Deus supremo e os deuses menores, entendidos como emanações ou mensageiros do primeiro. numa perspetiva que a historiografia recente descreve como “monoteísmo polilátrico”
Do lado judaico, a diáspora helenística deu origem a formas de religiosidade menos exclusivistas, marcadas pela abertura a simpatizantes não-judeus (theosebeis ou “tementes a Deus”). Estas comunidades, presentes em diversas cidades do Mediterrâneo projetavam uma conceção de Deus universal que transcendia as fronteiras étnicas e culturais.
Torna-se assim legítimo afirmar que tanto o monoteísmo pagão como o judaísmo da diáspora estiveram na base da inspiração para a espiritualidade hipsistiariana, oferecendo-lhe a estrutura conceptual e a matriz devocional que lhe garantiram ampla difusão no Mediterrâneo.
Características teológicas distintivas
A teologia hipsistiariana caracterizava-se por um monoteísmo estrito ou henoteísmo que reconhecia a supremacia absoluta de uma divindade transcendente.
Theos Hypsistos era concebido como uma realidade incorpórea, situada além das limitações materiais e das representações antropomórficas que caracterizavam o paganismo tradicional. Esta conceção aproximava-se simultaneamente da teologia judaica, da filosofia platónica e de desenvolvimentos posteriores no cristianismo primitivo.
A universalidade constituía outro traço fundamental da visão espiritual hipsistiariana. Contrariamente às religiões tradicionais do seu tempo, o culto ao Deus Altíssimo não se limitava a fronteiras geográficas ou genealógicas específicas, apresentando-se como verdade acessível a toda a humanidade. Esta abertura facilitaria posteriormente a conversão de comunidades hipsistarianas ao cristianismo.
A dimensão providencial da divindade constituía igualmente elemento central da teologia hipsistiariana.
Theos Hypsistos não era concebido como princípio abstrato ou força cósmica impessoal, mas como uma realidade envolvida na promoção da ordem ética do universo e no devir da humanidade.
Esta conceção distinguia o movimento hipsistiariano de certas correntes filosóficas do seu tempo que propunham divindades essencialmente indiferentes ao destino humano.
Práticas rituais e organização comunitária
As práticas cultuais hipsistarianas revelavam notável diversidade regional, refletindo a capacidade do movimento de adaptar-se a contextos culturais distintos sem comprometer a sua identidade teológica fundamental.
Houve comunidades que adotaram elementos da observância judaica, incluindo a santificação do sábado, restrições alimentares e práticas de purificação ritual, embora frequentemente rejeitassem a circuncisão e outros aspetos considerados excessivamente particularistas da Lei mosaica.
A arquitetura dos espaços de culto combinava elementos da sinagoga judaica com características dos templos greco-romanos, criando ambientes que expressavam materialmente a síntese religiosa característica do movimento. A ausência de imagens divinas distinguia estes locais dos templos pagãos tradicionais, refletindo o compromisso com a transcendência absoluta de Theos Hypsistos.
A organização comunitária apresentava características marcadamente igualitárias e democráticas, antecipando estruturas que viriam a caracterizar as primeiras comunidades cristãs.
Com efeito, as comunidades hipsistiarianas possuíam redes sociais igualitárias, promoviam a organização de refeições comunitárias e partilhavam funções de forma democrática. Mulheres, plebeus, escravos e outras pessoas de posição social mais desfavorecida eram tratados em pé de igualdade com os membros da elite social.
A relação com as figuras paradigmáticas de sabedoria
O movimento hipsistiariano distinguiu-se na paisagem religiosa da Antiguidade pela sua abordagem singular relativamente às figuras de sabedoria e aos mestres espirituais de tradições diversas.
Enquanto a maioria das correntes religiosas da época estabelecia fronteiras rígidas entre profetas legítimos e falsos mestres, entre revelação autêntica e mera superstição humana, os hipsistarianos desenvolveram critério mais inclusivo e simultaneamente mais exigente: reconhecer e venerar "o melhor, o mais perfeito" que chegasse ao seu conhecimento, independentemente da sua origem cultural ou religiosa.
Esta disposição não representava um relativismo que considerasse todas as tradições igualmente válidas, nem sincretismo superficial que justapusesse elementos heterogéneos sem discernimento.
Pelo contrário, manifestava convicção profunda de que Theos Hypsistos – o Deus Altíssimo – se revelara através de múltiplos profetas, filósofos e mestres espirituais, cada qual adaptado ao contexto cultural específico do seu povo e época. A excelência espiritual e filosófica, onde quer que se manifestasse, constituía sinal da proximidade com o Divino.
Esta perspetiva permitia aos hipsistarianos desenvolver uma constelação rica de figuras veneradas que transcendia fronteiras étnicas e confessionais. Profetas judeus, filósofos gregos, mestres persas e sábios egípcios podiam todos ser reconhecidos como portadores legítimos de verdades sobre Theos Hypsistos.
Neste contexto, a espiritualidade hipsistiariana demonstrou uma grande reverência por figuras como Platão, Pitágoras, Moisés e Jesus.
A interação com o cristianismo primitivo
O cristianismo nascente encontrou terreno fértil entre os hipsistarianos. Estes já veneravam o Deus Altíssimo sem imagens, já praticavam assembleias comunitárias, já cultivavam uma ética de solidariedade e igualdade.
De facto, o cristianismo primitivo e os hipsistarianos partilhavam elementos-chave, designadamente os seguintes: monoteísmo transcendente; culto sem ídolos; assembleias fraternas com refeições comunitárias, semelhantes à eucaristia; igualitarismo social, que unia ricos e pobres, homens e mulheres, livres e escravos.
Não surpreende, por isso, que muitas comunidades hipsistarianas tenham sido absorvidas pelo cristianismo durante os primeiros séculos da nossa era, contribuindo para moldar a sua fisionomia universalista.
Os hipsistarianos e as Escolas de Mistérios da Antiguidade
A relação entre o movimento hipsistiariano e as diversas escolas de mistérios da Antiguidade constitui aspeto crucial para compreender a complexidade e sofisticação teológica deste fenómeno religioso.
Longe de constituir rejeição sectária das tradições espirituais circundantes, os hipsistarianos desenvolveram estratégias elaboradas de incorporação e reinterpretação de elementos mistéricos à luz do monoteísmo fundamental.
Os mistérios de Ísis e Serápis exerceram influência particularmente significativa sobre comunidades hipsistarianas estabelecidas no Egipto.
A identificação de Theos Hypsistos com Serápis, divindade sincrética que combinava elementos de Osíris, Ápis e Zeus, permitia aos devotos participar nos rituais isíacos reinterpretando-os em chave monoteísta.
Ísis era concebida não como divindade independente, mas como manifestação da Sophia (Sabedoria) divina, intermediária entre o Deus Altíssimo e a criação material.
O mitraísmo, particularmente influente nos ambientes militares romanos, contribuiu para desenvolvimentos hipsistarianos relacionados com cosmologia astrológica e estruturas iniciáticas graduais.
Algumas comunidades adotaram sistemas de sete graus de iniciação correspondentes às esferas planetárias, concebendo o percurso espiritual como ascensão progressiva através dos céus em direção à união com Theos Hypsistos.
A influência das tradições dionisíacas revela-se significativa para compreender a organização comunitária das primeiras assembleias cristãs e a sua relação com movimentos hipsistarianos precedentes. As associações dionisíacas funcionavam como estruturas proto-sindicais que reuniam artesãos e trabalhadores de diversas profissões, proporcionando suporte mútuo, celebrações rituais e funerais dignos.
As primeiras comunidades cristãs, muitas delas compostas por convertidos hipsistarianos, adotaram estruturas organizacionais similares.
Títulos como "portador da tocha" (phosphoros), "portador do templo" (naophoros) e "portador de Cristo" (christophoros) ecoavam designações encontradas nas comunidades hipsistarianas.
Esta continuidade estrutural facilitava a transição de devotos hipsistarianos e membros de cultos mistéricos para o cristianismo nascente.
O igualitarismo radical que caracterizava as comunidades hipsistarianas constituía aspeto particularmente notável.
Mulheres, escravos libertos e pessoas de baixa condição social eram tratados em pé de igualdade com membros das classes superiores, princípio que encontrava legitimação teológica tanto nas tradições dionisíacas quanto nos ensinamentos de Jesus sobre a transformação da organização social no âmbito da manifestação do Reino de Deus.
Os mistérios de Elêusis, centrados no mito de Deméter e Perséfone, proporcionavam modelos conceptuais para compreender a transformação espiritual. O rapto de Perséfone ao mundo subterrâneo e o seu retorno periódico eram interpretados alegoricamente como descida da alma ao mundo material e a sua ascensão mística subsequente. A epopteía, grau supremo de iniciação eleusina que proporcionava visão directa do divino, oferecia paradigma para as aspirações místicas hipsistarianas de contemplação imediata de Theos Hypsistos.
O orfismo, com a sua ênfase na purificação progressiva da alma e na transcendência do ciclo de encarnações, influenciou desenvolvimentos teológicos hipsistarianos sobre a natureza da salvação e o destino último da alma. As teogonias órficas, que postulavam um princípio divino primordial transcendente, harmonizavam-se com as conceções hipsistarianas sobre a absoluta transcendência de Theos Hypsistos.
A relação com a Teosofia Antiga
A relação entre a espiritualidade hipsistiariana e a teosofia antiga, particularmente na sua manifestação neoplatónica, na qual revela-se extraordinariamente profunda e multifacetada. Longe de constituírem fenómenos isolados, estas correntes partilhavam aspirações fundamentais, metodologias similares e, em muitos casos, influenciavam-se mutuamente de modos complexos e recíprocos.
Amónio Sacas, figura maior da teosofia antiga, desenvolveu uma síntese filosófica que transcendia fronteiras confessionais, característica que o aproximava profundamente das ideias hipsistarianas.
O seu círculo de discípulos incluía figuras que viriam a exercer influência profunda sobre o desenvolvimento espiritual e filosófico da Antiguidade tardia. Merecem destaque Plotino, um dos pensadores mais proeminentes do neoplatonismo, Herénio, Cássio Longino, o filósofo pagão Orígenes e Orígenes, um dos maiores pensadores do cristianismo primitivo. Esta diversidade de discípulos reflete o carácter verdadeiramente universalista da teosofia antiga.
Tanto o movimento hipsistiariano quanto a teosofia neoplatónica procuravam transcender as limitações de tradições particulares sem abandonar profundidade espiritual.
Ambos reconheciam que a verdade sobre o divino manifesta-se através de múltiplas formas culturais, mas que estas manifestações convergem ultimamente numa realidade transcendente única – Theos Hypsistos para os hipsistarianos, o Uno para os neoplatónicos.
Esta perspetiva distinguia-se radicalmente tanto do exclusivismo sectário, que reivindicava monopólio sobre a verdade divina, quanto do relativismo que negava a possibilidade de verdade transcendente. Representava uma via espiritual sofisticada que afirmava simultaneamente a universalidade da verdade e a legitimidade de múltiplos caminhos de acesso.
As estratégias empregadas por espiritualidade hipsistiariana e a teosofia antiga para harmonizar tradições diversas demonstravam sofisticação notável.
A interpretação alegórica permitia descobrir significados profundos em textos aparentemente contraditórios. A identificação de correspondências entre as conceções sobre as divindades de diferentes panteões e níveis das hierarquias cósmicas possibilitava sínteses que preservavam elementos de múltiplas tradições. Estas metodologias não representavam mero ecletismo superficial que justapunha elementos heterogéneos sem princípio unificador. Pelo contrário, procuravam identificar princípios fundamentais que subjazem a manifestações superficialmente diversas, criando sínteses verdadeiramente orgânicas que possuíam coerência interna própria.
Tanto o movimento hipsistiariano quanto a teosofia neoplatónica, particularmente nos seus desenvolvimentos teúrgicos tardios, reconheciam que a transformação espiritual não se alcança mediante conhecimento puramente mental. Práticas rituais, purificações, ascese e experiência mística constituíam componentes essenciais do percurso espiritual.
Esta ênfase na dimensão experiencial distinguia ambos os movimentos de formas de religiosidade puramente doutrinárias ou institucionais.
Na perspetiva da espiritualidade hipsistiariana e da teosofia antiga, o desenvolvimento espiritual não consistia em assentimento intelectual a proposições, mas em transformação ontológica do conhecedor através do conhecimento. A henosis neoplatónica e a união mística com Theos Hypsistos representavam culminações de processos que envolviam a totalidade do ser humano: corpo, alma e espírito.
O desenvolvimento de sistemas complexos de hierarquias ontológicas constituía resposta comum ao problema fundamental de como conciliar a transcendência absoluta do princípio divino com a sua imanência na criação. As hipóstases plotinianas, as henades proclianas e as angelologias hipsistarianas ofereciam quadros conceptuais para compreender a mediação entre o Absoluto e o mundo material.
Estas hierarquias não eram meras especulações abstratas, mas possuíam função soteriológica crucial. Delineavam o percurso que a alma devia percorrer na sua ascensão, identificavam os obstáculos e riscos que devia superar, e indicavam os meios através dos quais podia alcançar a união com o Divino. O conhecimento das hierarquias cósmicas constituía, assim, elemento essencial da sabedoria salvífica.
A síntese entre a espiritualidade hipsistiariana e a teosofia neoplatónica exerceu influência profunda e duradoura sobre desenvolvimentos posteriores na espiritualidade ocidental.
A patrística cristã, particularmente os Padres Capadócios (Basílio Magno, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa) e Pseudo-Dionísio Areopagita, empregou categorias neoplatónicas para articular a teologia cristã, criando sínteses que preservavam elementos tanto do neoplatonismo quanto de tradições hipsistarianas.
Durante a Idade Média islâmica, filósofos como Avicena e Suhrawardi desenvolveram sínteses entre o neoplatonismo e o islamismo que ecoavam estratégias sincréticas empregadas anteriormente por pensadores hipsistarianos. A filosofia da iluminação (ishraq) de Suhrawardi apresenta paralelos notáveis com temas da teosofia antiga, incluindo a ênfase na experiência luminosa direta do Divino.
No Ocidente medieval e renascentista, a recuperação do neoplatonismo através de traduções e comentários alimentou movimentos espirituais que recuperavam elementos da teosofia antiga. A Cabala cristã de Pico della Mirandola, o hermetismo renascentista de Marsilio Ficino, e posteriormente movimentos como o rosacrucianismo e a teosofia moderna de Helena Petrovna Blavatsky, todos beberam das mesmas fontes da teosofia antiga que haviam nutrido o movimento hipsistiariano.
A relevância para a contemporaneidade
A célebre passagem anteriormente citada, em que Johann Wolfgang von Goethe descreveu a sua identificação com os hipsistarianos, constitui um momento crucial na história da espiritualidade.
Na velhice, Goethe lamentava não ter encontrado uma confissão espiritual à qual pudesse aderir sem reservas, até descobrir a existência histórica dos hipsistarianos – aqueles que, “encurralados entre pagãos, judeus e cristãos, declararam que iriam valorizar, admirar e honrar o melhor, o mais perfeito que chegasse ao seu conhecimento”.
Esta descoberta ofereceu a Goethe um quadro conceptual através do qual pôde compreender a sua própria trajetória espiritual. A disposição hipsistiariana de reconhecer e venerar a excelência em qualquer tradição, na medida em que esta mantivesse “ligação estreita com a Divindade”, ressoava profundamente com o universalismo espiritual que caracteriza o pensamento goethiano.
A identificação revelada por Goethe com os hipsistarianos representa o reconhecimento de uma afinidade espiritual profunda. A sua obra multifacetada manifesta essa mesma disposição hipsistiariana de buscar a verdade por múltiplas vias, rejeitando o sectarismo, mas sem abdicar do compromisso com a transcendência.
A confissão de Goethe antecipava questões da maior relevância para a espiritualidade contemporânea.
Numa época marcada por um pluralismo religioso sem precedentes e, simultaneamente, por fundamentalismos sectários, a perspetiva hipsistiariana oferece uma via alternativa, capaz de preservar a profundidade espiritual sem exigir exclusivismo dogmático.
Com efeito, a contemporaneidade caracteriza-se por uma tensão entre pluralismo crescente e a busca por autenticidade espiritual. Muitos indivíduos enfrentam a mesma dificuldade que Goethe exprimiu: a impossibilidade de aderir sem reservas a uma tradição particular, sem por isso renunciar a aspirações espirituais genuínas.
A perspetiva hipsistiariana propõe uma resolução possível para esta tensão. Afirma que a fidelidade ao transcendente não exige necessariamente o compromisso exclusivo com uma tradição, podendo expressar-se através da disposição para reconhecer e venerar a excelência espiritual onde quer que se manifeste. Esta atitude não constitui um ecletismo superficial, mas sim um discernimento espiritual maduro, que distingue manifestações autênticas do transcendente das meras construções culturais.
O movimento hipsistiariano antecipou questões centrais do diálogo inter-religioso contemporâneo. A sua capacidade de criar sínteses coerentes entre tradições aparentemente incompatíveis demonstra que as fronteiras religiosas convencionais podem ser mais permeáveis do que frequentemente se supõe.
Esta perspetiva não implica que todas as tradições sejam equivalentes ou que as diferenças doutrinárias careçam de significado. Os hipsistarianos mantiveram um firme compromisso com o monoteísmo estrito, reinterpretando elementos politeístas em chave monoteísta. De modo análogo, o diálogo inter-religioso contemporâneo pode buscar pontos de convergência sem exigir o abandono de convicções fundamentais das diversas tradições espirituais.
A prática hipsistiariana de reconhecer múltiplos mestres de sabedoria sugere uma conceção de teologia da revelação progressiva, particularmente relevante para o contexto atual. Tal conceção entende a verdade divina como manifestando-se em revelações sucessivas, adaptadas a contextos culturais específicos, sem que nenhuma delas esgote o mistério do transcendente.
Esta perspetiva harmoniza-se com a compreensão moderna do carácter historicamente condicionado de todas as formulações religiosas. Reconhece-se que nenhuma tradição detém o monopólio da verdade divina, embora algumas possam oferecer expressões mais adequadas ou profundas do que outras.
A síntese hipsistiariana entre o monoteísmo e as religiosidades pagãs oferece recursos preciosos para o desenvolvimento de uma ecologia espiritual de que o mundo contemporâneo carece urgentemente.
As tradições pagãs, com a sua veneração da natureza e o reconhecimento do sagrado no cosmos material, complementam a ênfase monoteísta na transcendência divina.
Esta visão permite um verdadeiro “reencantamento” do cosmos, entendendo a natureza como manifestação da sabedoria e do poder de Theos Hypsistos, digna de reverência e cuidado, sem, contudo, a divinizar de modo que comprometa o monoteísmo fundamental.
A ênfase hipsistiariana na possibilidade de experiência direta do Divino – influenciada tanto por tradições místicas judaicas como pelos mistérios pagãos e pelo hermetismo – oferece um contrapeso necessário às tendências excessivamente racionalistas ou institucionalistas de muitas tradições religiosas contemporâneas.
A busca atual por espiritualidade experiencial, expressa no interesse crescente pela meditação, contemplação e práticas místicas, encontra precedente e legitimação na tradição hipsistiariana. Esta reconhece que o conhecimento da Divindade não se limita ao assentimento intelectual a proposições doutrinárias, mas deve incluir uma dimensão experiencial e transformadora.
Conclusão: Sabedoria Perene para Tempos de Mudança
O movimento hipsistiariano, longe de constituir uma mera curiosidade histórica, oferece à humanidade contemporânea um modelo de espiritualidade caracterizado por profundidade teológica, abertura intelectual e capacidade de síntese criativa. A sua relevância para os nossos tempos manifesta-se em múltiplas dimensões.
Em primeiro lugar, demonstra a viabilidade de sínteses espirituais que transcendem as fronteiras religiosas convencionais, sem resvalar para o relativismo ou para o sincretismo superficial. Os hipsistarianos mantiveram um compromisso firme com o monoteísmo transcendente, ao mesmo tempo que reconheciam manifestações legítimas da sabedoria divina em múltiplas tradições.
Em segundo lugar, anteciparam questões centrais do pluralismo religioso contemporâneo, oferecendo um precedente histórico para abordagens que valorizam a diversidade sem abdicar da profundidade. A confissão de Goethe encontra eco em inúmeros contemporâneos que buscam autenticidade espiritual para além das estruturas confessionais estabelecidas.
Em terceiro lugar, a espiritualidade hipsistiariana fornece recursos conceptuais de grande valor para o desenvolvimento de conceções espirituais capazes de responder aos desafios do nosso tempo: a crise ecológica, o pluralismo religioso, a secularização e a busca por uma espiritualidade autêntica. A sua síntese entre a transcendência monoteísta e a sacralidade imanente oferece o fundamento para uma ecologia espiritual de que o mundo carece urgentemente.
Finalmente, a espiritualidade hipsistiariana demonstra que a fé na transcendência não exige sectarismo nem exclusivismo, mas pode expressar-se na disposição para reconhecer e venerar a Realidade Divina, onde quer que esta se manifeste. Esta sabedoria, transmitida ao longo dos séculos desde a Antiguidade até à atualidade, constitui um legado precioso para a humanidade dos nossos tempos, apontando o caminho para formas mais maduras, integradoras e conscientes de espiritualidade.
Daniel José Ribeiro de Faria
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