Jorge Almeida

Berço Eternamente Sem Nome

Por Jorge Almeida em Março de 2022

Tema Opinião / Publicado na revista Nº 25

  Há muito tempo atrás, pelas memórias que me levam entre servos e amos, fui a negação entre o amor e o desejo. Perdi a conta das vezes que atravessei este manto de sofrimento, onde a sedução de criança busca quem ser do nada que é.

Estou certo de que tudo terá começado no século XVII, o período da restauração de Portugal com o início do reinado de D. João IV. Eu simplesmente nasci em Elvas, como tantas outras criaturas, e fui tomado pelas asas da alvorada para tecer o destino de lembranças vagas. Era um tempo de grande vulnerabilidade, pela bestialidade humana que reinava absoluta.

Ainda na meninice, questionei a minha mãe sobre o paradeiro do meu pai. Mas, o silêncio era a resposta que merecia escutar naquela altura. Talvez fosse a forma de ela me dizer que o meu mundo era como o das outras crianças, onde a ausência da outra metade nos tornava mais fortes. 

E nesta espécie de lugar e tempo místicos a que fui colhido, lágrimas se derramavam pela presença da fome, como também das doenças. Destino maldito que acometeu a consciência do meu débil corpo, que cedo parti.

Em meados de março de 1849, um ano depois da revolução francesa, Deus concedeu o milagre da minha nova vida para renascer das cinzas do passado. A autenticidade e a simplicidade, modos de ser que era como recém-chegado, em um mundo a ser conquistado com lágrimas.

Envolto em mistério do silêncio audível, seguia pelo trilho em direção ao rio Sena, na companhia de dois irmãos mais velhos, 9 anos e 12 anos respetivamente. A nossa mãe partiu recentemente deste mundo, deixando-nos a vagar sobre um abismo, que contemplava um tempo incerto.

Optei por acreditar secretamente que eu e os meus irmãos, órfãos da ironia do destino, eramos levados para um novo recomeço de vida, onde as estrelas nos guiariam para as melhores escolhas, pela vida afora.

Com o rosto extremamente magro, cabelos e barba grisalhos e esgrouvinhados, via-me com uma mão cheia de décadas de dramas e iniquidades. Na cabana, a conversar com Deus e na sua proximidade, pedi-lhe humildemente perdão pelo ensejo de partir, mesmo sabendo que não havia um lugar certo para estar. A prece foi atendida…

Por entre as frestas do tempo e alheio às estrelas cadentes, despertei-me de um longo sonho amordaçado pela incógnita do amanhã.  Com o intrincado e instigante verão de 1965, na cidade invicta do Porto, fui movido por emoções e lamentos de uma mãe, presa pelo encantamento em vão.

A consciência maternal, culpada e aprisionada no firmamento da vida, não deixou de dar o melhor de si para assegurar que as vivências da sua prole não fossem envolvidas em sombras.

Mas, quis o destino que eu vivesse abraçado à frialdade da minha identidade, que teimosamente embriaga o esquecimento como a melhor vingança de eternizar a saudade de um amor desconhecido.

Jorge Almeida


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