Daniel Faria

OS VÉUS DA ETERNIDADE ( Parte II)

Por Daniel Faria em Maio de 2025

Tema Espiritualidade / Publicado na revista Nº 40

O PROÉMIO DA DOUTRINA SECRETA COMO PORTAL PARA A SABEDORIA PERENE

OS TRÊS LOGOS E A MANIFESTAÇÃO CÓSMICA

Um dos aspetos mais complexos e profundos do Proémio da Doutrina Secreta é a descrição dos três Logos — princípios emanativos através dos quais o Absoluto se manifesta gradualmente como cosmos estruturado. Blavatsky descreve-os da seguinte forma:

- O Primeiro Logos: o impessoal e não manifestado, precursor do Manifestado. É a Primeira Causa, "o Inconsciente dos panteístas europeus"; 

- O Segundo Logos: Espírito-Matéria, Vida; o Espírito do Universo, Purusha e Prakriti — a dualidade primordial; 

- O Terceiro Logos: Ideação Cósmica, Mahat ou Inteligência, a Alma Universal do Mundo, o Númeno Cósmico da Matéria, também chamado Mahâ-Buddhi.

Esta tríade lógica apresenta notáveis correspondências com modelos trinitários presentes em diversas tradições esotéricas. 

O PRIMEIRO LOGOS E AS SUAS CORRESPONDÊNCIAS

O Primeiro Logos teosófico é descrito por Blavatsky como "o impessoal e não manifestado, precursor do Manifestado". Representa o primeiro movimento do Absoluto em direção à manifestação, embora permaneça ainda nos limiares entre o imanifestado e o manifestado, sendo caracterizado pela sua natureza impessoal e abstrata.

Este Primeiro Logos encontra notável correspondência com o Nous (Intelecto Divino ou Mente Divina) do neoplatonismo, a primeira emanação do Uno. O Nous é caracterizado como o reino das Ideias arquetípicas. 

Assim como o Primeiro Logos mantém-se próximo ao Absoluto, sem ainda manifestar a dualidade, o Nous neoplatónico caracteriza-se pela unidade na multiplicidade - as Ideias nele contidas são distintas enquanto princípios formativos, mas indissociáveis na sua natureza essencial, constituindo uma totalidade orgânica.

Particularmente significativa é a descrição que Blavatsky faz deste Primeiro Logos como "o Inconsciente dos panteístas europeus". Esta caracterização aponta para um aspeto paradoxal deste primeiro movimento emanativo: embora represente um princípio de inteligibilidade, transcende ainda a consciência reflexiva, mantendo-se numa esfera superconsciente que, do ponto de vista da consciência ordinária, pode ser interpretada como inconsciência.

O Primeiro Logos corresponde igualmente à Coroa (Kether) na Cabala e ao Propator (Pré-Pai) nos sistemas gnósticos. 

Na linguagem hermética do Corpus Hermeticum, este Primeiro Logos corresponderia ao "Nous dos Nous", a inteligência suprema que, segundo o Poimandres, é "a Luz de Luzes". No gnosticismo valentiniano, corresponderia ao Bythos no seu primeiro movimento emanativo.

Em suma, o Primeiro Logos representa o primeiro movimento do Absoluto em direção à manifestação, ainda que permaneça no limiar entre o manifestado e o não-manifestado.



O SEGUNDO LOGOS E AS SUAS CORRESPONDÊNCIAS

O Segundo Logos, descrito como Espírito-Matéria, representa a primeira dualidade cósmica, a diferenciação primordial sem a qual nenhuma manifestação posterior seria possível. 

No sistema neoplatónico, a correspondência mais aproximada encontra-se na Alma do Mundo. 

Contudo, é importante notar que o sistema teosófico difere do neoplatónico na ordem das emanações, pois o Segundo Logos teosófico combina características que no neoplatonismo se distribuem entre o Nous e a Alma do Mundo.

A Alma do Mundo neoplatónica é descrita como tendo duas faces: uma voltada para cima, em direção ao Nous, de onde recebe os princípios inteligíveis; outra voltada para baixo, em direção ao mundo sensível, ao qual transmite esses mesmos princípios. Esta dualidade de orientação corresponde à natureza dual do Segundo Logos teosófico, que contem simultaneamente os princípios espiritual (Purusha) e material (Prakriti).

O Segundo Logos teosófico corresponde na díade Chokmah (Sabedoria) e Binah (Entendimento) da Cabala. 

Esta díade reflete o aspeto dual do Segundo Logos, onde Chokmah representa o princípio masculino e Binah o princípio feminino.

Esta dualidade encontra paralelos na distinção na polaridade Osiris-Isis na tradição egípcia e no par Valentiniano Bythos-Sige (Abismo-Silêncio).

Particularmente interessante é a correspondência com Barbelo, a "Mãe-Pai" ou "Pronoia" (Previdência) dos ensinamentos gnósticos, que é descrita como andrógina e como a primeira emanação do Deus Inefável. Assim como o Segundo Logos contém em si tanto Purusha quanto Prakriti (Espírito e Matéria), Barbelo é descrita como contendo em si os princípios masculino e feminino em perfeito equilíbrio.

O TERCEIRO LOGOS E AS SUAS CORRESPONDÊNCIAS

O Terceiro Logos, no contexto da teosofia, é identificado como a Ideação Cósmica, Mahat ou Inteligência Universal, o princípio ordenador que estrutura o cosmos segundo leis e padrões arquetípicos inteligíveis. 

Atua como intermediário entre o mundo ideal e o mundo manifestado. Esta conceção ressoa com diversas tradições filosófico-esotéricas, como o Demiurgo platónico, visto como o artífice divino que contempla os paradigmas eternos e os imprime na matéria, criando uma imagem temporal do eterno. 

Embora os neoplatónicos, como Plotino e Proclo, não apresentem um equivalente exato ao Terceiro Logos como hipóstase distinta, reconhecem-lhe paralelos na função operativa da Alma do Mundo e em certos aspetos do Nous. 

O Terceiro Logos, como inteligência cósmica organizadora, encontra paralelo nas sete Sephirot inferiores, especialmente em Tiphereth (Beleza) que harmoniza forças e Da'at (Conhecimento) que coordena as emanações.

O Terceiro Logos teosófico encontra correspondência no Logos de Heráclito, como razão universal, e no mediador entre o Pleroma e o cosmos, e no Logos de Fílon de Alexandria, simultaneamente lugar das Ideias platónicas e instrumento da criação divina. 

No gnosticismo, particularmente na tradição setiana, o Cristo Cósmico nascido da união entre o Pai e Barbelo assume função semelhante, como mediador entre o Pleroma (Plenitude Divina) e o cosmos manifestado.

Em todas estas tradições, o Terceiro Logos cumpre a mesma função essencial: transmitir os arquétipos eternos à substância primordial, assegurando a mediação entre a transcendência e a manifestação.

FOHAT: A ENERGIA DINÂMICA DA IDEAÇÃO CÓSMICA

Um conceito singular introduzido por Helena Blavatsky na obra “A Doutrina Secreta“ é o de Fohat, descrito como a ponte energética que conecta Espírito e Matéria, Ideação e Substância.

Fohat é o princípio dinâmico e eletrovital que atua como ponte entre o Pensamento Divino e a substância cósmica, tornando visíveis as ideias arquetípicas sob a forma das leis da Natureza. Representa a força animadora que desperta, estrutura e organiza a matéria primordial, conduzindo-a do caos indiferenciado à multiplicidade ordenada das formas de vida no universo manifestado.

Blavatsky desvenda a natureza e função de Fohat, conceito único da cosmologia teosófica que representa o vínculo dinâmico entre os planos dos númenos e dos fenómenos. Fohat é o agente transformador que traduz as potencialidades abstratas do Pensamento Divino em realidades concretas no mundo manifesto. Qual artesão cósmico, este poder eletromagnético primordial imprime os padrões arquetípicos da Ideação Cósmica na matriz virginal da Substância Primordial. Fohat atua como inseminador, organizador e vivificador da Matéria Cósmica, estabelecendo uma hierarquia ordenada de formas cada vez mais complexas, desde partículas subatómicas até às mais elevadas manifestações da consciência.

Este conceito de uma energia mediadora entre os domínios espiritual e material encontra paralelos em diversas tradições esotéricas:

- O Pneuma da filosofia grega, como força vital que permeia o cosmos; 

- O Spiritus Mundi dos alquimistas, como mediador entre o Céu e a Terra; 

- O conceito hermético de "Fogo criador" mencionado no Corpus Hermeticum.  

Fohat representa, assim, o aspeto dinâmico e criativo do Terceiro Logos, o princípio que traduz a Ideação Cósmica em manifestação estruturada segundo leis inteligíveis.

Constata-se que a estrutura trinitária dos Logos teosóficos apresenta paralelismos notáveis com a trindade gnóstica composta pelo Pai Inefável, Barbelo (a Mãe Divina) e o Cristo Cósmico:

O Primeiro Logos teosófico corresponde ao Pai Inefável nos sistemas gnósticos. Ambos representam o princípio supremo e transcendente, origem de todas as emanações.

O Segundo Logos encontra clara correspondência em Barbelo, a primeira emanação do Pai nos sistemas gnósticos. Barbelo é descrita como "Mãe-Pai", "Primeiro Humano" e "Eterno Eón", refletindo a sua natureza andrógina — semelhante à descrição do Segundo Logos como contendo tanto Purusha quanto Prakriti, tanto o princípio espiritual quanto o material.

Nos textos gnósticos setianos, Barbelo é apresentada como tripla na sua natureza (triplo andrógino) e primeira manifestação da potencialidade divina, assim como o Segundo Logos representa a primeira dualidade diferenciada a partir do Absoluto.

O Terceiro Logos teosófico, como Ideação Cósmica e Inteligência ordenadora, corresponde ao Cristo Cósmico gnóstico. Nos textos setianos, o Filho Unigénito (Monogenes) nasce da união entre o Pai e Barbelo, e é através dele que o mundo arquetípico (Pleroma) se estrutura. Ambos atuam como mediadores entre o plano divino e o plano manifestado, sendo responsáveis pela ordenação da manifestação segundo princípios inteligíveis.



O PRINCÍPIO UNO E A SEXUALIDADE CÓSMICA

Um aspeto particularmente interessante do Proémio é a discussão sobre a natureza andrógina do Princípio Uno e das suas emanações.

No seu modo de ser absoluto, o Princípio Uno, sob os seus dois aspetos, Parabrahman e Mûlaprakriti, não tem sexo, é incondicionado e eterno.

Com efeito, Blavatsky elucida a natureza do Princípio Absoluto para além das dualidades, incluindo a sexual. Na sua essência transcendental, o Uno não possui características limitativas como o género. Contudo, na sua primeira manifestação manvantárica, a irradiação primária emerge como andrógina – contendo em perfeito equilíbrio os princípios masculino e feminino. À medida que a manifestação desce aos planos inferiores do cosmos, ocorre uma progressiva diferenciação, surgindo a polaridade sexual como expressão da dualidade primordial Espírito-Matéria. Este processo revela uma verdade profunda: todas as dualidades aparentes derivam da unidade primordial e anseiam regressar a ela.

Esta conceção do Divino como transcendendo a dualidade sexual, mas contendo em si os princípios masculino e feminino em perfeita união, encontra paralelos em numerosas tradições esotéricas:

- As divindades andróginas como Ardhanarishvara (Shiva-Shakti) no hinduísmo; 

- O Adão Kadmon cabalístico, que contém em si os princípios masculino e feminino; 

- O Rebis alquímico, símbolo da união perfeita entre o Rei e a Rainha, Sol e Lua.

- No gnosticismo, esta ideia manifesta-se claramente na conceção de Barbelo como "Mãe-Pai" e na descrição do Propatōr (Pré-Pai) como contendo em si um aspeto feminino (Ennoia, o Pensamento) que só posteriormente se diferencia como hipóstase separada.

A ALMA UNIVERSAL E A JORNADA DAS ALMAS INDIVIDUAIS

O Proémio encerra com uma exposição sobre a identidade de todas as almas com a Alma Universal e o processo evolutivo pelo qual as centelhas individuais retornam à sua fonte divina.

Helena Blavatsky desvenda o propósito da existência manifestada – a evolução da consciência através de todos os reinos da natureza (mineral, vegetal, animal, humano e suprahumano). A jornada evolutiva começa impulsionada pelas forças da Natureza, mas progressivamente desenvolve-se através do autoesforço consciente. O Karma, como lei de causa e efeito, regula este processo ascensional, assegurando que cada ser colha exatamente o que semeou. A evolução abrange um espectro vastíssimo – desde a consciência rudimentar nos minerais até à mais elevada inteligência espiritual nos Dhyani-Buddhas. Esta visão grandiosa contrasta com o materialismo reducionista, revelando o universo como escola de experiências para o desenvolvimento progressivo da centelha divina até à plena consciência da sua natureza essencial.

Esta descrição do processo evolutivo das almas encontra paralelos em:

- A anodos (ascensão) e kathodos (descida) da alma no neoplatonismo;

- O ciclo de metensomatose (transmigração das almas) no pitagorismo;

- A jornada da alma que supera os arcontes no gnosticismo;

- A ascensão da alma através das esferas celestes no hermetismo.

Blavatsky enfatiza, contudo, que este processo evolutivo depende dos esforços conscientes da entidade individual, regulados pela lei do Karma.

Na sua perspetiva, a doutrina axial da filosofia esotérica não admite a atribuição arbitrária de privilégios ou dons especiais, afirmando que apenas o esforço, o mérito e a evolução consciente do ser, ao longo de múltiplas vidas, justificam qualquer avanço espiritual. Esta doutrina valoriza a responsabilidade individual, sustentando que o progresso resulta de conquistas através da experiência e da superação, em sucessivas reencarnações e metempsicoses, dentro de um ciclo contínuo de aperfeiçoamento interior.

CONCLUSÃO

O Proémio da "Doutrina Secreta" de Helena Petrovna Blavatsky constitui uma síntese magistral de conceitos cosmológicos presentes nas tradições esotéricas. Através de uma análise comparativa cuidadosa, podemos observar como os princípios enunciados por Blavatsky estabelecem pontes entre as tradições ocidentais como o neoplatonismo, o hermetismo, o gnosticismo e a cabala e as tradições orientais como o Vedanta e o budismo esotérico.

Os Três Logos teosóficos, em particular, demonstram uma correspondência estrutural com os modelos trinitários presentes nestas diversas tradições, sugerindo a existência de uma Filosofia ou Sabedoria perene, que transcende a diversidade das expressões religiosas e filosóficas da humanidade.

O trabalho de Blavatsky não representa, portanto, uma mera compilação eclética de conceitos díspares, mas uma rearticulação coerente da sabedoria esotérica universal em linguagem adaptada à mentalidade moderna. Ao estabelecer a trilogia formada pelo Princípio Omnipresente, a Lei Cíclica e a Identidade Fundamental de todas as almas com a Alma Universal, o Proémio fornece as chaves interpretativas para toda a complexa cosmovisão desenvolvida ao longo da obra "A Doutrina Secreta".

Esta cosmovisão, que integra harmoniosamente espírito e matéria, ciência e espiritualidade, razão e intuição, oferece um modelo cosmológico capaz de responder aos desafios do mundo contemporâneo, propondo uma alternativa tanto ao materialismo científico quanto ao dogmatismo da generalidade das religiões institucionalizadas. 

Na síntese teosófica, o cosmos revela-se como um organismo vivo e consciente, em constante evolução, no qual cada ser participa do grande drama cósmico da manifestação e do retorno à Unidade primordial.


Daniel José Ribeiro de Faria 



Bibliografia

Autores Vários. (1979). Dicionário das grandes filosofias. Lisboa: Edições 70.

Blavatsky, H. P. (1975). Síntese da doutrina secreta. São Paulo: Editora Pensamento.

Blavatsky, H. P. (1999). A doutrina secreta. São Paulo: Editora Pensamento.

Blavatsky, H. P. (1999). Síntese da doutrina secreta. São Paulo: Editora Pensamento.

Blavatsky, H. P. (2022). A chave da teosofia. Lisboa: Edições Minotauro.

Brum, A., & Dullius, A. (2021). A gnosis de João, Brasília: Edições Garbha-Lux.

Hoeller, S. A. (2002). Gnosticism: New light on the ancient tradition of inner knowing. Wheaton: Quest Books.

Langri, S. (n.d.). Estudos seletos em “A doutrina secreta”. Brasília: Editora Teosófica.

MacLennan, B. J. (2013). The wisdom of Hypatia: Ancient spiritual practices for a more meaningful life. Woodbury: Llewellyn Publications.

Pagels, Elaine (2004). Os Evangelhos Gnósticos, Porto: Via Optima. 




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