
OS VÉUS DA ETERNIDADE ( Parte I)
Por Daniel Faria em Maio de 2025
O PROÉMIO DA DOUTRINA SECRETA COMO PORTAL PARA A SABEDORIA PERENE
INTRODUÇÃO
Este ensaio propõe-se a analisar o Proémio da obra “A Doutrina Secreta”, de Helena Petrovna Blavatsky, explorando o seu valor fundacional no pensamento teosófico e a sua ressonância com as cosmologias das antigas Escolas de Mistérios. Ao traçar paralelismos entre os axiomas esotéricos apresentados por Blavatsky e os ensinamentos das tradições iniciáticas, procura-se demonstrar a continuidade da Sabedoria Perene que atravessa épocas e culturas.
No limiar entre o visível e o invisível, entre o conhecido e o incognoscível, Helena Petrovna Blavatsky descortinou um véu que havia permanecido intacto por milénios.
Perante a sua visão clarividente, manifestou-se um manuscrito de origem enigmática — as Estâncias de Dzyan — uma coleção de folhas de palma impermeabilizadas por processos desconhecidos, resistentes à água, ao fogo e ao desgaste do tempo.
Estas estâncias, segundo Blavatsky, continham os registos primordiais da evolução cósmica e humana, escritas numa língua ancestral denominada Senzar, constituindo a base para a obra monumental A Doutrina Secreta.
Este ensaio propõe-se a explorar o Proémio desta obra magistral, estabelecendo conexões entre a cosmologia teosófica de Blavatsky e as tradições esotéricas das Escolas de Mistérios da Antiguidade, nomeadamente o neoplatonismo, o hermetismo, o gnosticismo e a cabala.
Através destas ligações, revelar-se-á como a obra A Doutrina Secreta representa uma síntese moderna de conhecimentos ancestrais, oferecendo uma visão integral do cosmos que transcende simultaneamente as limitações do materialismo científico e do dogmatismo da generalidade das religiões institucionalizadas.
A VISÃO INICIÁTICA DE BLAVATSKY
A experiência mística que conduziu Blavatsky à redação da Doutrina Secreta manifesta-se, no Proémio, através de uma sequência de símbolos visuais carregados de significado profundo.
Inicialmente, surge um disco de brancura imaculada sobre um fundo de negro intenso — imagem do Cosmos na Eternidade, antes do despertar da Energia primordial. Esta representação simbólica evoca o estado de Pralaya descrito nas cosmologias orientais, um período de dissolução e repouso cósmico.
Seguidamente, o mesmo disco aparece com um ponto no centro, simbolizando a aurora da Manifestação. Este ponto no círculo, símbolo recorrente nas tradições esotéricas desde os tempos mais remotos, representa o germe interno do qual se desenvolverá o Universo — o Ovo do Mundo, simultaneamente ativo e passivo, alternando ciclicamente entre estes dois estados. Este símbolo encontra paralelos no Aleph hebraico, no Ovo Órfico da tradição grega e no Hiranyagarbha (Ovo Dourado) da filosofia hindu.
Como explica Blavatsky, o círculo é o símbolo por excelência da Unidade Divina, origem e destino de toda a existência. A circunferência representa o limite da compreensão humana perante o Divino incognoscível, enquanto o plano circular manifesta a Alma Universal. Paradoxalmente, embora pareçam distintos, transcendência e imanência são uma única realidade – o finito contém o infinito, e o visível oculta o invisível num eterno abraço cósmico.
Esta descrição evoca diretamente o conceito neoplatónico do Uno, postulado como a fonte transcendente e inefável de toda a existência. Também ecoa o Ain Soph da Cabala e o Brahman sem atributos (Nirguna Brahman) do Vedanta.
OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA DOUTRINA SECRETA
O Proémio estabelece três proposições fundamentais que sustentam toda a cosmologia teosófica:
- A existência de um Princípio Omnipresente, eterno, sem limites, imutável e incognoscível - a Causa Infinita, o Absoluto ou a Raiz Sem Raiz;
- A eternidade do Universo, que passa por ciclos incessantes de atividade e inatividade - os Dias e Noites de Brahman, ou Manvantaras e Pralayas;
- A identidade fundamental de todas as almas com a Alma Universal, sendo esta um aspeto da Raiz desconhecida.
O PRINCÍPIO OMNIPRESENTE
A primeira proposição apresentada por Helena Petrovna Blavatsky constitui o pilar metafísico sobre o qual assenta todo o seu sistema cosmogónico. Esta proposição postula a existência de uma Realidade Absoluta que transcende radicalmente qualquer capacidade de conceptualização humana, estabelecendo assim os fundamentos ontológicos de toda a doutrina esotérica.
O Parabrahman, termo que Blavatsky adota da tradição do Vedanta, representa esta "Raiz sem Raiz" – uma expressão deliberadamente paradoxal que procura apontar para o carácter inconcebível desta realidade suprema.
Este paradoxo apresenta um dos ensinamentos fundamentais da sabedoria esotérica: a fonte última de toda a existência é, pela sua própria natureza, inefável e incognoscível na sua totalidade.
Por transcender as categorias do pensamento humano, essa Fonte permanece envolta em Mistério, sendo apenas acessível por via intuitiva ou revelação interior, não por descrição racional ou exaustiva.
Blavatsky enfatiza que qualquer tentativa de definir ou caracterizar este Princípio Absoluto o limita e distorce, pois confrontamos o infinito com instrumentos cognitivos finitos.
Blavatsky afirma que a verdadeira sabedoria começa com o reconhecimento dos limites intrínsecos da cognição humana. O seu convite não é para definir ou capturar o Absoluto em conceitos rígidos, mas para intuir a sua presença através da expansão da consciência para além dos seus limites habituais – o verdadeiro propósito de toda a sabedoria autêntica.
Neste sentido, o Parabrahman não pode ser considerado uma entidade ou um ser no sentido convencional do termo, mas antes a própria matriz transcendental da existência que permeia tudo sem ser limitada por coisa alguma, é simultaneamente imanente e transcendente, permanece imutável perante as transformações do universo manifestado e escapa a todas as categorias dualistas do pensamento humano.
Este princípio primordial, simultaneamente origem de tudo e incognoscível na sua essência, é apresentado como a base ontológica sobre a qual assenta a totalidade do edifício metafísico da teosofia moderna.
Tal conceção não é exclusiva desta tradição. Ela encontra paralelos notáveis em diversas correntes filosóficas e esotéricas da Antiguidade, testemunhando uma intuição universal da existência de um fundamento último da realidade para além das categorias do pensamento discursivo.
A tradição neoplatónica, por seu turno, encontra no Uno o paradigma de transcendência absoluta. Este princípio, situado além do ser e do não-ser, é a origem de todas as hipóstases, mas permanece, ele próprio, totalmente incognoscível. No corpus platónico, a referência ao mundo hyperouranios – o domínio supra-celeste – reforça esta intuição de uma realidade superior, luminosa, porém inatingível ao intelecto discursivo.
De igual modo, nos escritos herméticos, o Nous ou o Intelecto ou Mente Divinas, particularmente no tratado Poimandres, é descrito como "Luz de Luzes", expressão que simultaneamente evoca presença e mistério.
Blavatsky sintetiza essas intuições ao propor que esta Realidade Suprema seja simbolicamente representada por dois aspetos complementares: o Espaço Abstrato e o Movimento Abstrato.
O primeiro representa a pura subjetividade, campo infinito de potencialidade e matriz primordial da manifestação.
O segundo, simbolizado pelo "Grande Sopro", corresponde ao princípio dinâmico eterno, à Consciência Incondicionada que anima e estrutura o cosmos. Estes dois aspetos não constituem uma dualidade ontológica, mas antes dois modos simbólicos de apontar para o mesmo Absoluto inefável.
Para articular a relação entre o Absoluto e a manifestação, Blavatsky recorre à distinção entre Parabrahman e Mulaprakriti. Parabrahman designa o aspeto absolutamente transcendente e não condicionado da Realidade, enquanto Mulaprakriti é a raiz primordial da substância, o véu que oculta o Absoluto, o princípio feminino arquetípico e o substrato noumenal de toda a matéria. Importa salientar que Mulaprakriti não é "matéria" no sentido físico ou empírico, mas sim a sua dimensão potencial e não-manifesta, pré-existente a qualquer forma concreta.
Não é incomum interpretar esta relação como uma dualidade metafísica. No entanto, Blavatsky insiste numa leitura não-dual: Parabrahman e Mulaprakriti coexistem eternamente, sem precedência temporal ou hierárquica, constituindo polaridades conceptuais inseparáveis. Esta complementaridade fundamental espelha-se em múltiplas tradições esotéricas, desde o hermetismo ao tantrismo tibetano. Estamos perante uma unidade dual primordial que serve de arquétipo para todas as polaridades da manifestação.
Esta dialética entre o absolutamente transcendente e o potencialmente imanente prepara o terreno para a cosmogénese esotérica que Blavatsky irá desenvolver ao longo da obra. O paradoxo de afirmar simultaneamente uma Realidade Suprema e a sua essencial incognoscibilidade obriga-nos a repensar as possibilidades do conhecimento. Se o Absoluto transcende toda definição, como falar dele? Blavatsky propõe um modelo de conhecimento simbólico e aproximativo, no qual o discurso não pretende capturar o Absoluto, mas apenas indicá-lo através de imagens, paradoxos e metáforas que ultrapassam o pensamento dualista.
Esta primeira proposição constitui, assim, mais do que uma abstração metafísica: é a chave hermenêutica para a leitura do cosmos enquanto manifestação do Uno inefável. Ao postular um Princípio Omnipresente que escapa à razão e à linguagem, Blavatsky estabelece um fundamento universal que evita tanto o materialismo reducionista como o teísmo antropomórfico convencional.
A proposta de Blavatsky oferece uma via singular de compreensão do universo, integrando a diversidade das formas na unidade de um Mistério que se revela silenciosamente através da Unidade de Vida.
A ETERNIDADE DO UNIVERSO
A segunda proposição estabelece a natureza cíclica da manifestação cósmica. O Universo não teve um início nem terá um fim; antes, existe em ciclos de atividade (Manvantara) e repouso (Pralaya) que se sucedem eternamente. Esta visão cíclica do tempo e da existência cósmica encontra ressonância no conceito de Aion na filosofia grega, nos ciclos de Yugas no hinduísmo e na visão estoica dos ciclos cósmicos culminando no Ekpyrosis (conflagração universal).
Blavatsky aborda o pulsante ritmo cósmico que governa a manifestação universal. O cosmos não é criado ex nihilo, ou seja, a partir do nada absoluto, mas emerge através da expansão dinâmica da Essência Divina, num movimento simultaneamente centrípeto e centrífugo. O universo visível constitui o resultado final dessa cadeia progressiva de causação cósmica. Esta lei de periodicidade eterna – os ciclos de atividade (Manvantara) e repouso (Pralaya) – permeia todos os níveis da existência, desde a respiração humana até às enormes expansões e contrações cósmicas. Tudo quanto existe passa por estes ciclos de manifestação e dissolução, num eterno "respirar" cósmico que não teve início nem terá fim.
Esta descrição evoca o modelo cósmico de expansão e contração presente tanto nos Puranas hinduístas quanto na filosofia pré-socrática de Empédocles, que descrevia ciclos cósmicos alternando entre Neikos (Discórdia) e Philia (Amor).
A IDENTIDADE DAS ALMAS COM A ALMA UNIVERSAL
A terceira proposição afirma a identidade essencial de todas as almas individuais com a Alma Universal, sendo esta um aspeto do Absoluto. Este princípio estabelece a base para a peregrinação evolutiva de cada entidade consciente.
A consciência individual emerge do oceano da Consciência Universal. Cada alma é, em essência, uma centelha da Chama Divina Eterna, mas não pode alcançar plena consciência de si sem passar pelo ciclo completo da experiência manifestada. Como uma semente que contém todo o potencial da árvore, a centelha divina carrega em si todas as possibilidades, mas necessita do campo da materialidade para se desenvolver. Este processo de individualização não é instantâneo, mas gradual, exigindo a passagem por todas as formas elementais do universo manifesto – desde as mais simples e densas até às mais complexas e subtis.
Esta visão da alma como uma centelha divina que passa por um ciclo evolutivo encontra paralelos na doutrina neoplatónica do retorno da alma à sua origem divina (epistrophē), na anamnesis platónica e na gnose como processo de autoconhecimento e recordação da origem divina nas escolas gnósticas.
Daniel José Ribeiro de Faria
Bibliografia
Autores Vários. (1979). Dicionário das grandes filosofias. Lisboa: Edições 70.
Blavatsky, H. P. (1975). Síntese da doutrina secreta. São Paulo: Editora Pensamento.
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Blavatsky, H. P. (2022). A chave da teosofia. Lisboa: Edições Minotauro.
Brum, A., & Dullius, A. (2021). A gnosis de João, Brasília: Edições Garbha-Lux.
Hoeller, S. A. (2002). Gnosticism: New light on the ancient tradition of inner knowing. Wheaton: Quest Books.
Langri, S. (n.d.). Estudos seletos em “A doutrina secreta”. Brasília: Editora Teosófica.
MacLennan, B. J. (2013). The wisdom of Hypatia: Ancient spiritual practices for a more meaningful life. Woodbury: Llewellyn Publications.
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