Thich Nhat Hanh (1926-2022) foi uma das figuras mais influentes da espiritualidade contemporânea.
De origem vietnamita, Thich Nhat Hanh, tratado carinhosamente como Thay pelos seus discípulos, foi um dos mestres budistas mais prestigiados a nível mundial.
Além de mestre espiritual, destacou-se como um ativista incansável pela paz e pelos direitos humanos.
Martin Luther King chegou a nomeá-lo para o Prémio Nobel da Paz, referindo-se a ele como "um apóstolo da paz e da não-violência"
Ele tinha uma profunda veneração por duas figuras espirituais de grande importância: Siddhartha Gautama, o Buda, e Jesus, o Cristo, ambos vistos como modelos de espiritualidade essenciais para a humanidade.
Thich Nhat Hanh promoveu uma nova forma de espiritualidade que, em vez de fixar-se nos dogmas e divisões doutrinárias, enfatizou o que ele chamou de "entre-ser" — a interconexão de todas as coisas.
Ele acreditava que os seres humanos, na sua essência, compartilham uma realidade comum e que as diferentes tradições espirituais oferecem janelas singulares para ter acesso à Verdade Absoluta.
Através dos valores do entre-ser, da plena consciência, da compaixão ativa e não dualidade, ele ofereceu uma via fortemente inspiradora para a transformação espiritual da humanidade.
O mestre apelava a uma "ética global", uma resposta às crises da modernidade, incluindo a crise ecológica ambiental e a injustiça social, com uma prática de atenção plena profundamente enraizada na compaixão por todas as formas de vida.
A sua filosofia espiritual enfatiza que cada ação, por mais simples que seja, pode ser uma prática de transformação espiritual.
OS VALORES FUNDAMENTAIS
O entre-ser
Na mundividência espiritual de Thich Nhat Hanh, existe um conceito fundamental: o entre-ser (interbeing).
O entre-ser representa a ideia de que todos os seres e fenómenos estão interligados, formando uma teia de interdependência. Segundo ele, nada existe isoladamente; tudo está em constante relação com tudo o que nos rodeia.
Este conceito tem origem na interpretação de Thich Nhat Hanh de um termo presente na versão chinesa do Avatamsaka Sutra, um texto central da tradição Mahāyāna, que inspirou a escola Huayan do budismo chinês.
A vida é uma rede de interdependências onde tudo se reflete mutuamente. Esta visão ecoa a "rede de Indra", uma metáfora budista para a interconectividade infinita de todos os seres e fenómenos
A imagem metafórica da “rede de Indra” é utilizada para descrever o universo como uma rede infinita de interligações. Cada ponto de intersecção dessa rede contém uma joia que reflete todas as outras, representando a interdependência e a interpenetração de todos os fenómenos.
Esta crença é essencial para o desenvolvimento da compaixão e da compreensão profundas, uma vez que reconhecemos que o sofrimento dos outros é também o nosso sofrimento.
Para Thich Nhat Hanh, esta imagem expressa a verdadeira natureza da realidade: um fluxo contínuo onde cada ser, animado ou inanimado, depende de todos os outros para existir. Na filosofia do entre-ser, tudo o que existe está intrinsecamente ligado. Esta visão sublinha que nenhum fenómeno pode ser isolado, e que cada ação e cada ser afeta e é afetado pelo todo.
A plena consciência
A prática de plena consciência (mindfulness) é central no legado de Thich Nhat Hanh. Envolve a consciência constante do momento presente, com a intenção de transformar a vida quotidiana numa prática espiritual. Desde atividades simples como comer ou lavar a louça até à meditação formal, a atenção plena é um meio de cultivar a paz e a compaixão, tanto para si próprio como para os outros.
A compaixão ativa
A compaixão, para Thich Nhat Hanh, é tanto uma qualidade espiritual como uma responsabilidade social. Ele promovia um ativismo pacífico, conhecido como "budismo comprometido", onde os praticantes são incentivados a envolver-se ativamente em questões da justiça social, dos direitos humanos e da proteção ambiental. A compaixão, desta forma, não é apenas uma prática interior, mas um compromisso de superar o sofrimento no mundo.
A não dualidade
Thich Nhat Hanh ensinava que a separação entre opostos – como eu e o outro, vida e morte, interior e exterior – é uma ilusão. O verdadeiro entendimento da realidade surge quando transcende essas dicotomias e se reconhece a unidade subjacente a todas as coisas. Esta visão não dualista está profundamente ligada à sua conceção do entre-ser.
A não dualidade na visão de Thich Nhat Hanh é um conceito fundamental que desafia a perceção comum de separação entre opostos. Para ele, as distinções entre opostos são ilusões criadas pela mente e que nos impedem de ver a verdadeira natureza da realidade. Através da prática da plena consciência, ele ensina que é possível transcender essa visão dualista, reconhecendo a profunda interconexão de tudo o que existe.
De acordo com Thich Nhat Hanh, existe uma ligação entre os valores do entre-ser e a não-dualidade.
Cada um de nós existe em interdependência com tudo o que nos rodeia. A dualidade entre "eu" e "outro" é apenas aparente; na verdade, ao cuidar do bem-estar do outro, cuidamos do nosso próprio bem-estar.
A prática da não dualidade conduz-nos a uma forma de vida baseada na compaixão e na compreensão. Quando percebemos que não há separação real entre nós e os outros, surge naturalmente o desejo de agir com bondade e compaixão, sabendo que a felicidade dos outros está intrinsecamente ligada à nossa. Essa compreensão da não dualidade convida-nos a viver em paz e harmonia com todos os seres, reconhecendo a unidade fundamental de toda a existência.
A VISÃO DO DIVINO, DO MUNDO E DA HUMANIDADE
A visão do divino, do mundo e da humanidade segundo Thich Nhat Hanh está profundamente enraizada na noção do entre-ser — a interconexão de todas as coisas.
Para ele, o Divino não é uma entidade separada ou transcendente, mas manifesta-se na interligação entre todos os fenómenos, podendo ser encontrado no momento presente, na plenitude da vida quotidiana, nas relações humanas e na natureza.
A visão do Divino
Conforme foi mencionado, a conceção de Thich Nhat Hanh sobre o Divino não se baseia numa entidade separada ou transcendente, mas na realidade que se manifesta na interconexão de todos os fenómenos. Para ele, o "Divino" pode ser experienciado na plena consciência e na prática da compaixão.
Ele acreditava que o estado de iluminação budista ou o conceito cristão do Reino de Deus" não são realidades distantes, mas experiências que podemos tocar no aqui e agora, acessível a todos através da prática da atenção plena.
A Presença divina está nas pequenas maravilhas da vida — o ar que respiramos, o sorriso de uma criança, o simples ato de estar presente. Esta visão rompe com a noção tradicional de um Deus externo e separado do Cosmos, enfatizando a presença do sagrado em tudo o que existe.
Fazendo uma ponte com o cristianismo, Thich Nhat Hanh via Deus como o amor incondicional que permeia todas as coisas, sendo esse amor equivalente à compaixão universal no budismo.
A visão do Mundo
Segundo Thich Nhat Hanh, o mundo é um espaço de interdependência profunda, onde a separação entre o "eu" e o "outro" é ilusória. O mestre enfatizava que todos os seres – humanos, animais, plantas, minerais e até fenómenos naturais – estão interligados. Esta interdependência leva à responsabilidade ética de cuidar do mundo e de todas as suas criaturas. Para ele, o sofrimento que enfrentamos, tanto a nível individual como coletivo, é resultado da nossa ignorância em relação à verdadeira natureza desta interconexão.
A visão da Humanidade
Thich Nhat Hanh acreditava que os seres humanos têm um grande potencial para a compaixão e a transformação, mas que frequentemente sofrem devido à sua incapacidade de reconhecer a interconexão com o mundo e os outros.
A prática espiritual, na sua visão, consiste em despertar para esta realidade, transformando o sofrimento pessoal e coletivo através da compaixão ativa.
A humanidade, segundo ele, deve aprender a viver em harmonia com a natureza e todos os seres vivos, cultivando uma consciência ecológica e social profunda.
Por exemplo, em relação à vida e à morte, Thich Nhat Hanh ensina que estas não são opostas, mas partes de um mesmo ciclo contínuo. Ele utiliza a analogia da nuvem que se transforma em chuva: a nuvem não "morre" quando desaparece do céu, mas transforma-se em algo novo. Assim, a morte não é o fim, mas uma transformação natural. Ao compreender a não dualidade, libertamo-nos do medo da morte e do apego à vida como algo fixo e permanente.
O DIÁLOGO ENTRE TRADIÇÕES ESPIRITUAIS
Um dos aspetos mais notáveis do legado de Thich Nhat Hanh é o seu compromisso com o diálogo interrreligioso, especialmente entre o budismo e o cristianismo. Ele escreveu várias obras que exploram as semelhanças entre as duas tradições.
Para Thich Nhat Hanh, as mensagens centrais de Siddhartha Gautama, o Buda histórico, e de Jesus, o Cristo histórico, como a compaixão, o amor e o perdão, são complementares, e os praticantes de ambas as tradições podem aprender uns com os outros.
O mestre via o diálogo entre as tradições espirituais como uma oportunidade para aprofundar o entendimento mútuo e para encontrar soluções comuns para os desafios globais, como o sofrimento humano e a degradação ambiental. Ele defendia uma espiritualidade universalista e não sectária, onde as práticas e crenças de diferentes tradições podem ser integradas num caminho comum de compaixão e atenção plena.
AS PRÁTICAS ESPIRITUAIS
As práticas espirituais na espiritualidade de Thich Nhat Hanh estão centradas na plena consciência (mindfulness) e no conceito do entre-ser, a interdependência de todas as coisas.
Ele desenvolveu um conjunto de práticas simples, mas profundamente transformadoras, que têm como objetivo despertar a consciência plena no momento presente e cultivar a compaixão, tanto para o bem-estar pessoal quanto para o bem-estar coletivo. Estas práticas são acessíveis a todos, independentemente de crença religiosa, e integram-se facilmente na vida quotidiana.
A plena consciência (mindfulness)
A prática central da espiritualidade de Thich Nhat Hanh é a plena consciência, que ele define como a capacidade de estar presente, aqui e agora, com total atenção ao que está a acontecer dentro e à nossa volta. Esta prática começa com respirar conscientemente: ao focar-se na respiração, as pessoas podem ancorar-se no presente e libertar-se de distrações, das preocupações e da ansiedade.
A plena consciência pode ser aplicada em todas as atividades quotidianas. Comer, caminhar, trabalhar ou até as atividades domésticas podem tornar-se atos meditativos se realizados com plena atenção. A prática contínua de mindfulness permite desenvolver um estado de paz interior e de clareza mental.
A meditação
A meditação é uma prática central para Thich Nhat Hanh. Sentados em silêncio, os praticantes da meditação focam-se na respiração, nos seus pensamentos ou nas sensações corporais, permitindo que as emoções e os pensamentos surjam sem julgamentos. A meditação sentada é uma oportunidade para observar a mente e os sentimentos com aceitação, compreendendo a sua natureza impermanente e não se apegando a eles.
As caminhadas meditativas
Thich Nhat Hanh deu grande ênfase às caminhadas meditativas como formas de trazer a plena consciência para os movimentos do corpo. Durante a caminhada, o praticante deve mover-se devagar, com atenção a cada passo e à sua conexão com a Terra. Este tipo de meditação permite cultivar uma profunda sensação de presença, enquanto se conecta com a natureza e o ambiente envolvente.
Os treze treinamentos de plena consciência
Thich Nhat Hanh desenvolveu um conjunto de ensinamentos éticos chamado Treze Treinamentos de Plena Consciência, que fornecem uma base para viver com compaixão e responsabilidade. Estes treinamentos envolvem práticas de ética, como a escuta atenta, a fala amorosa, o consumo consciente e a não-violência, incentivando uma vida harmoniosa com os outros seres humanos e não humanos.
O sino da plena consciência
Uma prática característica das comunidades fundadas por Thich Nhat Hanh é o Sino da Plena Consciência. Em intervalos regulares, um sino é tocado, e os praticantes são convidados a parar tudo o que estão a fazer e focar-se na respiração, voltando à atenção plena. Este simples ato de parar e respirar ajuda a recarregar a energia e a reconectar com o momento presente.
A VIVÊNCIA COMUNITÁRIA
As bases da organização espiritual de Thich Nhat Hanh estão centradas em princípios de plena consciência, interconexão e compromisso social. A sua comunidade global assenta em práticas simples, acessíveis e transformadoras, integrando a espiritualidade e a ação no mundo, em harmonia com o conceito do entre-ser.
A comunidade Plum Village, fundado em França em 1982, é o coração da organização espiritual de Thich Nhat Hanh. Este mosteiro e centro de retiro é um espaço de prática para monges, monjas e leigos, onde se cultivam os ensinamentos de plena consciência, compaixão e vida em comunidade. Aqui, os praticantes aprendem a integrar mindfulness no quotidiano e a viver em harmonia com a natureza e entre si.
A Ordem do Entre-Ser, criada em 1966, é uma comunidade monástica e leiga que segue os ensinamentos de Thich Nhat Hanh. Os seus membros comprometem-se a viver de acordo com os "Treze Treinamentos de Plena Consciência", que servem como guia para uma vida de compaixão e de responsabilidade social e ecológica.
Com base na visão espiritual de Thich Nhat Hanh, tem sido promovida a criação de comunidades disseminadas em diversas partes do mundo que oferecem um caminho de cura, tanto pessoal como planetária, onde o objetivo é viver em harmonia com a interconexão da vida, abraçando as tradições espirituais como um recurso comum para o bem-estar individual e coletivo.
UMA VIA DE TRANSFORMAÇÃO E DE ESPERANÇA
O legado espiritual de Thich Nhat Hanh transcende as fronteiras religiosas e culturais, oferecendo uma via de transformação que é simultaneamente espiritual e social.
Através da prática da plena consciência e da compaixão ativa, ele propôs uma nova espiritualidade universalista que harmoniza as tradições budista, cristã e outras, contribuindo para o despertar da consciência humana nos âmbitos individual e coletivo.
A sua visão do entre-ser convida-nos a reconhecer a nossa interconexão com todos os seres e a agir de acordo com essa verdade, para superar as diversas formas de sofrimento no mundo e a viver em harmonia com a Terra e a Unidade fundamental de toda a existência.
Daniel José Ribeiro de Faria
BIBLIOGRAFIA
BORGES, Paulo, O Sorriso do Buda, Amadora, Farol, 2020.
HANH, Thích, Nhat, Buda vivo, Cristo vivo, Lisboa, Círculo de Leitores, 1999.
HANH, Thich Nhat. A Essência dos Ensinamentos de Buda. Lisboa: Pergaminho, 2008.
HANH, Thich Nhat. A Paz Está em Cada Passo. Lisboa: Pergaminho, 2014.
HANH, Thich Nhat. Ser Paz. Lisboa: Pergaminho, 2015.