O sonho de HIPÁTIA
Por Daniel Faria em Março de 2024
No dia 8 de março de 415, uma mulher faleceu de forma trágica na cidade de Alexandria, no Egito, então território do Império Romano do Oriente. Foi assassinada de forma vil por uma multidão de fanáticos.
O seu nome era Hipátia, filósofa, matemática e astrónoma, uma das mulheres mais relevantes da Antiguidade Clássica e da História da Humanidade em geral.
Hipátia tinha um sonho: promover a reconciliação das religiões, filosofias e ciências e favorecer consequentemente a fraternidade humana universal, através da valorização da sua raiz espiritual comum, que na sua perspetiva era a conexão com o Uno como o princípio infinito, eterno e imutável de tudo o que existe, visível e invisível.
UMA VIDA EXEMPLAR
A data de nascimento de Hipátia não é exata. Mas as informações mais razoáveis indicam que Hipátia possa ter nascido cerca do ano 370, em Alexandria,
Na Antiguidade, Alexandria uma das principais cidades do mundo, onde confluíam as culturas do Oriente e do Ocidente, tendo uma população verdadeiramente multicultural onde sobressaiam egípcios, romanos, gregos, judeus, núbios, persas e indianos, entre outros grupos.
A grande diversidade cultural, religiosa e étnica gerou tensões, mas também providenciou o solo fértil no qual se desenvolve uma riqueza espiritual e filosófica particularmente fecunda.
Devido à morte precoce da sua mãe, Hipátia foi educada pelo pai, Theon, um ilustre filósofo que também se dedicava à matemática e à astronomia.
Sendo filha única, Hipátia teve toda a atenção paterna, recebendo uma educação esmerada de cariz multidisciplinar, abrangendo filosofia, matemática, astronomia, religião, poesia, artes, oratória e retórica.
Desde jovem, Hipátia teve um profundo envolvimento com tradições místicas e esotéricas. Hipátia baseou-se nos conhecimentos das Escolas de Mistérios, o que refletiu nos seus ensinamentos filosóficos e na transmissão da sabedoria mística junto dos seus alunos e seguidores.
Hipátia dava uma grande relevância à ética na sua vida. As fontes históricas descrevem-na como um modelo de coragem ética, retidão, veracidade, dedicação cívica e elevação intelectual.
A virtude mais venerada nela pelos contemporâneos era a sua sophrosyne, um estado mental inspirado pelo autoconhecimento. "Sophrosyne" é um conceito grego que se refere à virtude da moderação, temperança e autocontrole. Está relacionado à capacidade de manter um equilíbrio adequado na vida, através da prevenção de extremismo e paixões excessivas. A sophrosyne era considerada uma qualidade fundamental para alcançar a sabedoria e a excelência ética.
Hipátia valorizava o amor pela sabedoria na sua diversidade e a liberdade de pensamento e de consciência.
Daí ter liderado uma escola de sabedoria que era um verdadeiro lar para aqueles que buscavam a sabedoria e a verdade, independentemente da sua origem religiosa ou cultural.
Uma escola que enfatizava o conhecimento, a integridade ética e o crescimento espiritual numa atmosfera de tolerância, diversidade e respeito mútuo.
A escola de Hipátia era considerada como uma referência de sabedoria por estudantes da Ásia, África e Europa que vinham propositadamente para tê-la como mestra e professora.
Os seus discípulos chamando Hipátia de “a santíssima e reverenciada filósofa”, “a senhora abençoada” e “guia divina”; enaltecendo o seu “espírito divino”.
Hipátia foi uma figura dedicada ao conhecimento, no sentido mais amplo do termo, tendo tido um papel de destaque nos campos da astronomia e sobretudo da matemática.
Para Hipátia, a matemática era o alfabeto com o qual o Divino escreveu o livro da Natureza. Esta perspetiva reflete a sua convicção na ordem e harmonia subjacentes do cosmos, que podem ser discernidas através da linguagem da matemática.
Profundamente comprometida com o processo de aprofundamento e da transmissão da sabedoria, quando lhe perguntavam a razão por que não casara, respondia que já era casada com a Verdade,
A COSMOVISÃO DE HIPÁTIA
Por detrás da atividade multifacetada de Hipátia, existia uma visão da realidade ou cosmovisão.
A cosmovisão de Hipátia engloba as suas conceções mais amplas sobre a natureza da realidade, a existência humana e o propósito da vida entre outros aspetos.
Hipátia era uma seguidora convicta da visão espiritual preconizada por Amónio Sacas e Plotino, entre outros grandes mestres de Antiguidade.
Segundo Hipátia, a verdadeira sabedoria da alma é encontrada na adoração da Luz espiritual dentro da alma humana, aquela que ilumina a essência de todas as religiões,
Este conceito sugere um caminho universal e interno de iluminação espiritual que é acessível a indivíduos de todas as origens religiosas, refletindo uma visão universalista e inclusiva da espiritualidade,
Ao considerar que a Luz Divina ilumina a essência das diversas religiões a partir do núcleo interno das Escolas de Mistérios, Hipátia reconhecia a existência de uma dimensão oculta ou esotérica nos ensinamentos religiosos que transcende as crenças e os rituais exteriores, revelando verdades espirituais mais elevadas e acessíveis àqueles que procuram a iluminação interior.
Essa sabedoria mística e esotérica é considerada como uma ponte entre a Terra e o Céu, simbolizando a conexão entre o humano e o Divino. Esta imagem sugere que a verdadeira sabedoria espiritual facilita uma relação harmoniosa entre o material e o transcendente, permitindo aos seres humanos experimentar a ascensão espiritual e a união com o Divino, bem como uma relação de fraternidade e de respeito pela unidade e diversidade da Vida.
A atitude abrangente e inclusiva de Hipátia na busca da sabedoria insere-se na Teosofia antiga, Há que ter em consideração que o termo "Teosofia" significa "Sabedoria Divina".
Hipátia tinha uma grande reverência por Amónio Sacas, o fundador da Escola Teosófica Eclética. Além disso, os diversos aspetos da vida de Hipátia demonstram a sua ênfase na busca da sabedoria espiritual, na exploração de ensinamentos esotéricos e na valorização das virtudes éticas.
Inspirada pela sabedoria da Antiguidade, Hipatia enfatizava a relevância do Uno, a fonte última de toda a realidade.
A sua visão espiritual valorizava a interconexão de todos os seres e do Cosmos. Ensinava que tudo faz parte de um Todo divino maior e que reconhecer esta unidade é essencial para o desenvolvimento espiritual da pessoa humana.
Hipátia considerava que os seres humanos devem ser perseverantes na busca da sabedoria, do conhecimento e da autorrealização.
Preconizava a importância do autoconhecimento para expandir a consciência e a compreensão do Divino, bem como a relevância da harmonia existencial. Os seres humanos devem viver em harmonia consigo mesmos, com os outros e com o mundo natural. Neste sentido, devem cultivar compaixão, empatia e respeito por todas as formas de vida.
Hipátia considerava que os seres humanos podem alcançar níveis mais elevados de consciência, transcender as suas limitações e alcançar a iluminação por meio de práticas espirituais e sobretudo através da transformação interior.
Em seguida, analisaremos as perspetivas de Hipátia sobre a visão do Divino, do Cosmos e da humanidade, bem como sobre as práticas espirituais.
A VISÃO DO DIVINO
A visão do Divino segundo Hipátia é profundamente mística, enraizada nos ensinamentos de filósofos como Amónio Sacas, Plotino, Porfírio e Proclo, que enfatizava a unidade da existência, a natureza simultaneamente transcendente e imanente do Divino e a interconexão de todas as coisas.
Hipátia acreditava no monismo idealista, com caraterísticas panenteístas, com as seguintes caraterísticas estruturantes:
- A diversidade da existência é vista como emanações ou reflexos de uma unidade suprema;
- A realidade última é considerada como sendo fundamentalmente de natureza espiritual, em vez de material.
- O Divino é visto como transcendente e imanente, permeando todos os níveis da existência, ao mesmo tempo que os transcende. Hipátia apreciava a interação dinâmica entre o Unidade Divina e os múltiplos níveis de realidade
Neste sentido, Hipátia defendeu a proposição de que o Uno, também denominado como o Absoluto ou o Bem, é o princípio absoluto, supremo, inefável e incognoscível, que é a fonte de tudo o que existe, visível e invisível.
Ela abordou a natureza do Uno por meio da denominada teologia apofática, também conhecida como via negativa, que busca descrever o Divino pela negação ou pelo que ele não é. O Uno transcende o ser e não-ser. É inefável, além de todos os predicados e atributos, e não pode ser apreendido pelo intelecto ou percebido pelos sentidos. É a fonte da qual emanam todas as realidades, mas permanece eternamente além do plano da multiplicidade e da diferenciação. Toda a existência participa da unidade do Uno, que serve como base última do ser.
De acordo com a perspetiva de Hipátia, o Uno dá origem a níveis subsequentes de realidade através de um processo de emanações.
As primeiras emanações do Uno são o Nous e a Alma do Mundo, que formam com o Uno a as hipóstases da Tríade ou Trindade Divina.
A primeira emanação do Uno e a segunda hipóstase da Trindade Divina é o Nous, também denominado como o Intelecto Divino ou a Mente Divina, O Nous é caracterizado pela unidade e conhecimento absolutos. É a fonte de toda a realidade inteligível e o plano da unidade e da compreensão perfeitas, onde a multiplicidade é sintetizada no todo harmonioso. Dentro do Nous, existem os Arquétipos ou Formas divinas, que são os conceitos perfeitos e eternos de tudo o que existe no mundo material. De entre os Arquétipos, Hipátia destaca a Beleza, a Bondade, a Justiça e a Verdade.
A Alma do Mundo é a terceira hipóstase da Trindade Divina, emanando do Nous e, em última análise, do Uno. Também chamada de Alma Cósmica, a Alma do Mundo está associada à vida, ao movimento e à ordem no cosmos. É o princípio que anima e organiza o universo material, refletindo a ordem e a unidade divinas. Tem um papel de mediação entre o plano divino e o universo material. Por conseguinte, está conectada com as almas individuais,
Em suma, na visão de Hipátia, o Plano Divino, que emana do Uno ou Absoluto, é simultaneamente transcendente e imanente, estando presente em todos os aspetos e dimensões da realidade. A espiritualidade de Hipátia enfatizava a sabedoria infinita e o amor incondicional do Divino, inspirando os seres humanos a cultivar essas qualidades nas suas próprias vidas.
A VISÃO DO COSMOS E DO MUNDO
O cosmos é visto como um todo ordenado e harmonioso, refletindo os princípios divinos de unidade e perfeição.
Neste âmbito, a perspetiva de Hipátia valoriza a interconexão do macrocosmo e do microcosmo.
A visão do cosmos material é caracterizada por emanação de realidades superiores e divinas.
Segundo Hipátia, o cosmos material emana da fonte última, o Uno. O processo de emanação não é um ato criativo, mas um transbordamento natural da essência divina. O Nous contém as Formas ou os Arquétipos, que são representações perfeitas e eternas de tudo o que existe no mundo material. A Alma do Mundo é o princípio animador que confere ordem, harmonia e vitalidade ao cosmos material. Serve como mediador ou intermediário entre o plano inteligível do Plano Divino e o plano sensível do mundo material.
O mundo material inclui o universo físico e tudo dentro dele. O mundo material é caracterizado pela multiplicidade, mudança e imperfeição. É o plano do devir, onde as diversas formas de vida participam das Formas arquetípicas em vários graus.
Hipátia enfatiza a ideia de unidade da Vida dentro da diversidade, reconhecendo a interconexão de todas formas de vida – mineral, vegetal, animal, humana e suprahumana.
A Alma do Mundo está conectada com as almas individuais no mundo material. As almas individuais são consideradas emanações ou reflexos da Alma do Mundo, e a sua jornada envolve o retorno à unidade com o Divino.
A VISÃO DA HUMANIDADE
Hipátia preconizava que os seres humanos têm origem divina. Assim como todo o cosmos emana do Uno, as almas humanas também são consideradas emanações da Fonte Divina. Cada ser humano é uma centelha da Divindade e está inerentemente ligada às realidades superiores e desce ao mundo material.
Hipátia conceptualizava o ser humano como consistindo em três aspetos fundamentais:
- Nous (espírito ou alma superior): O nous é o aspeto do ser humano que está associado à inteligência, à razão e à compreensão espiritualmente mais elevadas. É considerado como a parte mais elevada do ser humano, capaz de contemplar as ideias eternas, sintonizar com o Divino e transcender a experiência mundana.
- Psique (alma inferior) A psique é a base da personalidade humana. Abrange os pensamentos concretos, as emoções e os desejos. É influenciada pelas contingências do mundo material, mas pode ser aprimorada e elevada através do desenvolvimento espiritual.
- Soma (Corpo): O soma é o corpo físico, material e tangível de uma pessoa. É o veículo através do qual a psique e o nous interagem com o mundo físico.
De acordo com a visão de Hipátia, as almas descem dos planos mais elevados e divinos para o mundo material. Esta descida não é vista como um castigo, mas como uma parte necessária da jornada da alma rumo à autorrealização e à evolução espiritual. O mundo material serve como um plano de experiência e aprendizagem, onde as almas podem desenvolver virtudes, superar obstáculos e, finalmente, regressar à sua origem divina.
Os seres humanos são responsáveis pelo seu próprio crescimento ético e espiritual. Segundo Hipátia, a morte refere-se ao corpo físico, pois a alma busca novas formas nas quais prossegue a sua peregrinação.
Com efeito, Hipátia reconhecia a reencarnação, considerando que, após a morte física, a alma deixa o corpo e viverá novamente noutro corpo humano. Cada vida é vista como um tempo de preparação para a próxima vida, levando a um aperfeiçoamento crescente no caminho tendente à união com o Divino.
A INTERAÇÃO ENTRE O DIVINO E A HUMANIDADE
Hipátia reconhecia uma estrutura hierárquica de seres que emanam do Uno, a fonte última de toda a existência.
No âmbito de seres intermediários entre o Uno e a humanidade, podem ser referenciados os anjos e os daimones (espíritos guardiões).
Hipátia acreditava que esses seres auxiliavam na evolução espiritual e no desenvolvimento ético da humanidade.
Na interação entre o Divino e a humanidade, Hipátia valorizava sobremaneira o papel dos instrutores, seres humanos que alcançaram a Sabedoria Divina, o mais alto nível de sabedoria.
Esses seres eram vistos como intermediários entre o mundo material e o Divino, e muitas vezes eram reverenciados como fontes de inspiração e de orientação espiritual.
Hipátia valorizava a tendência muito presente da Antiguidade de atribuir qualidades divinas a figuras notáveis que transcendiam as normais limitações humanas, especialmente aquelas que eram líderes espirituais, filósofos ou mestres de sabedoria. Figuras que inspiraram correntes espirituais, religiosas e filosóficas. Entre essas figuras, mereciam destaque filósofos gregos clássicos, como Pitágoras, Sócrates e Platão, o faraó egípcio Akhenaton e mensageiros religiosos como Moisés, Zoroastro, Siddartha Gautama e Jesus.
Contudo, na perspetiva de Hipátia, a reverência e a veneração pelos diversos seres espirituais não deveria desvalorizar a convicção de que a adoração espiritual por excelência deveria ser reservada somente à Fonte Divina, da qual emana tudo o que existe.
AS PRÁTICAS ESPIRITUAIS
Hipátia valorizava sobremaneira a conduta ética como meio de alinhamento com a ordem divina e facilitar a ascensão espiritual.
Neste âmbito, defendeu a prática das virtudes éticas como essencial para o desenvolvimento espiritual do ser humano.
A espiritualidade de Hipátia baseava-se nas seguintes práticas espirituais:
- Práticas Contemplativas: a meditação e as orações eram parte integrante das práticas espirituais diárias, promovendo a consciência interior e a conexão com o Divino.
- Rituais e cerimónias simbólicas, tendo como objetivos a transmissão de verdades espirituais e a promoção de experiências transformadoras.
- Estudo de textos de relevância para o desenvolvimento espiritual, incluindo obras filosóficas clássicas e escrituras de diversas tradições religiosas.
- Reuniões comunitárias para práticas espirituais compartilhadas, discussões e apoio mútuo na jornada espiritual.
- Serviço à comunidade, incluindo atividades caritativas, enaltecendo os valores da compaixão e de serviço ao próximo.
Hipátia propunha um caminho de iniciação para o desenvolvimento espiritual, que tem paralelos com as antigas escolas filosóficas e espiritualidades mistéricas.
Com efeito, para Hipátia, a filosofia era muito mais do que uma atividade intelectual. Baseando-se na antiga palavra grega therapeia, da qual deriva “terapia”, que significa simultaneamente “cura” e “cuidado”, Hipátia entendia que a filosofia antiga era therapeia – ao mesmo tempo cura e cuidado – para a alma, tendo como contribuir para progredir o seu nível de progresso espiritual. Na verdade, o propósito da filosofia é mais elevado do que a cura e o cuidado da alma, que é a transformação espiritual do ser humano.
Como muitas curas, a filosofia deve proceder em etapas, começando com a sua condição atual e prosseguindo através de fases sucessivas até que a cura seja bem-sucedida.
Neste sentido, Hipátia desenvolveu um caminho iniciático baseado no conceito dos três graus de sabedoria, que estava associado aos estágios correspondentes no processo de iniciação das antigas escolas de mistérios e a locais físicos da antiga Atenas.
Inspirando-se no legado das grandes incitações da Antiguidade, que reconheciam três graus – purificação, iluminação e revelação – nos quais o iniciado tinha uma experiência crescente de conexão com o Divino, o caminho iniciático proposto por Hipátia tinha os seguintes graus:
- 1.º grau de sabedoria - Jardim (epicurismo): O jardim simbolizava o primeiro grau de sabedoria, associado ao epicurismo. Este grau enfatizava a importância de cultivar a paz interior, o contentamento e a tranquilidade, através da moderação dos desejos. Os iniciados nesta fase concentravam-se no autocuidado, no bem-estar pessoal e na busca do prazer com moderação. O objetivo era atingir um estado de calma e de liberdade mental.
- 2.º grau de sabedoria - Pórtico (estoicismo): O pórtico simboliza o segundo grau de sabedoria, associado ao estoicismo. Valorizava-se a busca da liberdade e da serenidade através do desapego das circunstâncias externas e da aceitação do destino. Este grau enfatizava a resiliência, a autodisciplina e a virtude diante da adversidade. Nesta fase, os iniciados aprenderam a cultivar a força interior, a resiliência e a equanimidade emocional, superando o apego aos resultados externos. O objetivo é atingir um estado de paz interior e serenidade, independentemente das circunstâncias externas.
- 3.º grau de sabedoria – Bosque (platonismo). O bosque simbolizava o terceiro grau de sabedoria, associado ao platonismo e ao neoplatonismo. Neste grau, buscava-se a transformação espiritual e a união com o Divino por meio da contemplação filosófica e da ascensão intelectual. Este grau enfatizava a busca da verdade, beleza, sabedoria e harmonia transcendentes. Os iniciados neste estágio envolviam-se em profunda investigação filosófica, contemplação das formas e práticas místicas destinadas a transcender as limitações do mundo material. O objetivo era atingir um estado de iluminação espiritual, da realização da verdadeira essência humana e da união com o Divino.
A RELAÇÁO DE HIPÁTIA COM AS RELIGIÕES DA SUA ÉPOCA
A atitude de Hipátia relativamente às religiões do seu tempo foi caracterizada pela tolerância, curiosidade intelectual, discernimento crítico e uma busca pela verdade universal em termos espirituais e éticos.
Embora ela possa ter criticado aspetos de crenças e práticas religiosas, ela provavelmente os abordou com uma mentalidade aberta e um compromisso com a ética universal e a investigação filosófica.
Vivendo numa metrópole onde viviam seguidores de diferentes religiões, Hipátia estava inserida num ambiente cultural e religioso plural e diversificado, tendo defendendo a tolerância, o diálogo e a compreensão mútua em vez de conflito ou hostilidade
Hipátia mostrou reserva em relação a aspetos de crenças e práticas religiosas que considerava supersticiosas ou dogmatizados. Em alternativa, preconizou uma abordagem mística, esotérica e filosófica da espiritualidade.
Com efeito, Hipátia estava interessada em descobrir verdades universais sobre a natureza da realidade e da condição humana, que transcendiam doutrinas religiosas específicas. Além disso, valorizava a busca da verdade e a ascensão espiritual, muitas vezes através da contemplação filosófica e da prática ética.
Podemos inferir aspetos das perspetivas de Hipátia relativamente às religiões específicas da sua época, que estavam presentes no Império Romano ou nos territórios próximos.
Paganismo
Hipátia, como filósofa neoplatónica, provavelmente tinha um claro apreço pelos aspetos filosóficos e místicos das religiões pagãs. Ela pode ter visto os mitos e rituais pagãos como expressões simbólicas de verdades espirituais e princípios cósmicos, consistentes com a metafísica neoplatônica. Contudo, Hipátia pode ter criticado aspetos das crenças e práticas pagãs que ela considerava supersticiosas ou irracionais, Por exemplo, Hipátia considerava a politeísmo, ou seja, a crença em múltiplos deuses como expressões simbólicas de princípios e arquétipos divinos, em vez de seres literais. Aliás, Hipátia tinha uma compreensão monista da realidade, onde a diversidade da existência é vista como emanações ou reflexos de uma unidade suprema
Zoroastrismo
O Zoroastrismo, com a sua visão de mundo dualista e ênfase na conduta moral, pode ter motivado o interesse de Hipátia como filósofa preocupada com os valores éticos e a importância de levar uma vida virtuosa.
Budismo
O profundo interesse de Hipátia pelo misticismo e pela busca da iluminação podem tê-la levado a apreciar determinados aspetos do budismo, designadamente a sua ênfase na meditação e na superação do sofrimento e do apego.
Judaísmo
Hipátia provavelmente tinha um grande respeito pelas tradições religiosas judaicas, sobretudo na sua dimensão mística e esotérica e à importância atribuída à ética.
Cristianismo
Hipátia viveu numa época caracterizada pela ascensão progressiva do cristianismo à categoria de religião oficial do Império. Na linha de Amónio Sacas, Hipátia encarava Jesus como uma figura que representa a sabedoria divina e procurou restabelecer a sabedoria antiga e perene na sua integridade original, apresentando os princípios de uma vida harmoniosa de ponto de vista ético e espiritual. No âmbito da pluralidade interna do cristianismo, Hipátia teve uma maior ligação com o cristianismo gnóstico do que com cristianismo ortodoxo. Com efeito, o cristianismo gnóstico enfatizou o conhecimento esotérico e a ideia de salvação através da gnose ou iluminação espiritual. Hipátia, com o seu grande interesse pela mística, pode ter encontrado pontos em comum com aspetos relevantes do gnosticismo cristão, designadamente a sua ênfase na experiência espiritual interior, na natureza simultaneamente transcendente e imanente da Divindade e na essência divina de todos os seres humanos. Por seu turno, a sua visão espiritual pode tê-la levado a ter reservas em relação às conceções cristãs ortodoxas, como a Encarnação, a Expiação ou a doutrina de Trindade, tal ela foi aprovada no concílio de Niceia (325) enos concílios posteriores, considerando que tais conceções distorciam a verdadeira mensagem de Jesus e perpetuam o dogmatismo religioso.
Maniqueísmo
Hipátia, com o seu interesse pela ascensão espiritual e purificação da alma, pode ter encontrado paralelos entre os ensinamentos maniqueístas e os conceitos neoplatônicos, embora se afastasse da ideia de que o mundo material era inerentemente mau.
O SONHO DE HIPÁTIA: UMA UTOPIA (AINDA) NÁO REALIZADA
Hipátia teve um sonho espiritual profundamente entrelaçado com as suas aspirações místicas e as suas diversas atividades intelectuais.
Ao longo da sua vida terrena, Hipátia demonstrou ter uma compreensão especialmente ampla de que todos os caminhos do conhecimento, conduzem, em última análise, à Verdade Divina.
Hipátia tinha consciência de que o ser humano, ao sintonizar-se com os valores universais, ocupa exatamente o seu lugar no todo e respeita com tolerância as outras partes desse todo, manifestando em si a Sabedoria Universal.
Hipátia proclamou e vivenciou uma espiritualidade holística, uma tapeçaria de diversos sistemas espirituais e filosóficos tecidos pelos fios da Verdade Universal.
Uma espiritualidade que honra a sacralidade de toda a vida, abraça a interconexão de toda a existência e celebra a divindade imanente dentro de cada ser.
Encontramos em Hipátia uma visão de todo o Cosmos como teofania, ou seja, a manifestação do Uno, o princípio absoluto e supremo, a fonte de tudo o que existe, visível e invisível.
Uma manifestação que pode ser descrita como Amor.
Uma manifestação que nos chama para a vida interior da Divindade, para que nós possamos realizar a nossa essência divina de filhos e de filhas do Amor Absoluto.
Daniel José Ribeiro de Faria
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